A INDÚSTRIA DOS DANOS MORAIS

28 de Setembro de 2020

(...) e apesar de estar proclamado, solenemente na Constituição entre os direitos e garantias individuais, o princípio de que não há pena sem prévia cominação legal e do pacífico entendimento que em matéria punitiva a lei sempre se interpreta restritivamente, os juízes contaminados por um ativismo sem peias, dia a dia foram soltando o cabresto e, inspirados na chamada teoria do desestímulo, passaram a criar penas por débitos morais nas situações mais extravagantes e inusitadas.


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¹ Danilo Campos 

 

A industrialização de indenizações por danos morais, ou seja, a exploração lucrativa das desgraças, do infortúnio ou de situações simplesmente desagradáveis, mas naturais porque irremediáveis da vida em sociedade, é reprovada como imoral por adeptos de diferentes filosofias e religiões, mas encontraria expiação talvez entre alguns religiosos se parte destes ganhos fossem revertidos em forma de dízimos destinados às obras da igreja.

Entre os filósofos, os hedonistas, que têm como princípio viver com o máximo de prazer possível empregando o mínimo de esforço, e os relativistas morais, que proclamam a inexistência de verdades absolutas, não teriam como reprová-la.

Até muitos utilitaristas, para os quais a ação moralmente correta é aquela que tende a produzir a felicidade e o bem-estar coletivo, ousarão justificá-la.

       O economista, por sua vez, desde que gire a roda da economia, com o incremento da atividade econômica, o fluxo de capitais e o aumento dos postos de trabalho, aplaudiria este setor da economia que não sofre os impactos de nenhuma crise econômica, explicando que com liberdade as leis do mercado acabam por colocar tudo nos seus devidos lugares.

       Mas é o “jurista” com sua rigorosa e obcecada lógica formal quem enxerga sentido profundo neste nonsense e a advocacia, entrante nesta classe, aplaudiria, por razões óbvias, mais este nicho de mercado, muito embora pudesse ser totalmente dispensada, por desnecessária, a participação de advogados em pleitos desta natureza. Os préstimos dos atores calhariam muito melhor às partes.

       Entretanto, os legisladores, que são naturalmente comedidos, porque já o dizia Aristóteles são imunes a paixões, não conseguiram até agora conceituar precisamente o que seriam estes chamados danos morais, parecendo situá-lo nas hipóteses restritas das lesões aos atributos exteriores da personalidade, como o nome, a imagem, a honra, a exposição da vida privada e da intimidade das pessoas.

       Mesmo assim, e apesar de estar proclamado, solenemente na Constituição entre os direitos e garantias individuais, o princípio de que não há pena sem prévia cominação legal e do pacífico entendimento que em matéria punitiva a lei sempre se interpreta restritivamente, os juízes contaminados por um ativismo sem peias, dia a dia foram soltando o cabresto e, inspirados na chamada teoria do desestímulo, passaram a criar penas por débitos morais nas situações mais extravagantes e inusitadas.

       Nesse ímpeto, esqueceu-se completamente até das primeiras lições do direito, que distinguem as obrigações civis das morais, porque aquelas são passíveis de punição em caso de descumprimento, enquanto estas como dever de simples consciência, desarmadas, portanto, da previsão de sanções legais, não obrigam ninguém ao seu cumprimento.

         Simplesmente patético, portanto, que alguém saia do tribunal condenado porque rompeu com a noiva grávida e outro porque acabou o relacionamento por telefone, censurados outros tantos as suas infidelidades conjugais.

       No Rio, um juiz que não queria perder a piada, puniu por ilícito de imoralidade a demora na entrega do aparelho de televisão, porque segundo os fundamentos da decisão o consumidor ficou privado injustamente de assistir às gostosas do big-brother.

       Pena que esta jurisprudência não se aplique, por óbvias razões, aos próprios juízes, cujas decisões sempre atrasadas nos causam tantos infortúnios.

Na Justiça Trabalhista, onde se pratica generalizadamente o socialismo à la Robin Hood (tirar dos ricos para entregar aos pobres), multiplicam-se como bactérias as novas categorias de danos morais, chegando-se a indenizar-se até as expectativas frustradas dos desempregados que, em processo seletivo, esperavam por uma vaga.

E para meu pesar e tristeza, foi justamente aqui em nossas Minas Gerais, outrora a terra por excelência do comedimento, onde não se respeitou sequer a liberdade de culto religioso, sendo um padre condenado a indenizar por uma celebração de casamento que não atendeu à expectativa dos noivos.

Por este caminho, se muitos pais já estão sendo coagidos a compensar em dinheiro o desamor aos seus filhos, estaremos também em breve suprindo monetariamente as carências afetivas e os sonhos desfeitos de muitas senhoras desditosas levadas por promessas cavalheirescas a um infeliz casamento.

 Agora até os maus-tratos aos bichinhos já rendem proveito a seus donos, elevados que estão sendo os animais à categoria de sujeitos especiais de direitos.

Mas por incrível que pareça, foi no interior do Rio Grande do Sul, onde outrora se valorizava tão ardentemente os traços da masculinidade, que inventou-se punir severamente quem, ainda que com bons modos e discrição, ousou impor restrições a liberdade do beijo homossexual em público, porque segundo a lição dos magistrados gaúchos o beijo gay deverá ser doravante tolerado, ainda que “demorado e de língua”.

Foi-se, portanto, o tempo em que o juiz julgava de acordo com regras preestabelecidas, respeitando os costumes do lugar, se precavendo contra juízos pessoais. Agora, portanto, mesmo nos grotões, estamos todos a mercê de duvidosos conceitos morais de juízes “moderninhos”.

Dizia-se então com propriedade que os juízes deveriam julgar os fatos e não as pessoas e, de minha parte, eu me julgava mais confortável quando tínhamos a parcimônia de poupar os infelizes réus de chatérrimas e pieguíssimas lições morais.

         O Tempora. O Mores. Cada época com suas manias.

Só nos resta agora implorar para que o legislador, naturalmente lento, desperte desse sono profundo e venha em nosso socorro, acabando de vez com este besteirol, porque se os produtos da inteligência são tão escassos e limitados, a idiotice por sua vez é abundante e não tem limites.

Enquanto isto, como diria a música do Chico, mesmo com toda lama a gente vai levando.

¹ Empresário. Juiz de Direito Aposentado.